sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Analisando Diabo veste Prada e Tempos Modernos

A PROBLEMÁTICA DO TEMPO
A cena inicial do filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, mostra um relógio, marcando, aproximadamente, seis da manhã como o início da jornada de trabalho. Com efeito, durante a Revolução industrial, principalmente, em sua segunda fase, o relógio tem se tornado o símbolo do capitalismo: “tempo é dinheiro”, diz o ditado popular representando bem essa mentalidade. Donde vem as longas jornadas de trabalho que marcaram esse período inicial. O cientista social, Leo Huberman, em seu livro clássico, “História da Riqueza do Homem”, escreveu que “os dias de trabalho eram longos, de 16 horas. Quando conquistaram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, os trabalhadores tal motivação uma bênção”[1], demoraria muito ainda para se chegar a jornada atual.
Qual era a jornada de Carlitos na fábrica? Ao que parece, ele entrava no trabalho às 6 da manhã e encerrava o expediente ao fim da tarde: provavelmente, às 18 horas – como já era comum em 1936.
Quando Chaplin vai trabalhar na loja de departamentos, pode-se observar que o expediente da loja se inicia às nove e trinta, indicando que a jornada no comércio era mais generosa que na indústria.
Comparado com o filme “O Diabo Veste Prada”, a situação de Andy não era muito distante, talvez, até possa ser considerada pior, embora haja 70 anos de diferença entre o contexto histórico de um filme para o outro. Logo em seu primeiro dia, o telefone toca, o despertador marca 6:15 da manhã e todos já estavam a sua espera na Runway. Em um segundo momento, quando ela foi incumbida de deixar o livro na casa de sua chefe, teve que esperar na empresa até às 22h, 22:30h e, em seguida, entregá-lo na casa dela, o que resultaria em mais de 16h de serviço – muito mais que nos piores tempos da Revolução Industrial! Não se deve esquecer também que a qualquer momento Miranda podia solicitar os serviços de Andy pelo celular.
TEMPO X PRODUTIVIDADE
Tempo e produtividade estão estreitamente relacionados no longa-metragem chapliniano: o chefe exige por três vezes o aumento da velocidade das esteiras a fim de aumentar a produção. Carlitos satiriza: nesse ritmo frenético, não há tempo para distrações, nem para se coçar, nem para brigas! A esteira é tão rápida que se um operário se atrasar, todos são prejudicados. Isso nos faz lembrar a idéia da empresa concebida como um organismo vivo: todos devem exercer bem suas funções para que a organização como um todo esteja bem. Em outra cena, quando Carlitos trabalha como assistente do mecânico para concertar a máquina parada, ele acaba por achatar o relógio na prensa, como se quisesse indicar que o tempo nas fábricas é cada vez mais comprimido, apertado, achatado, curto: deve-se produzir mais em menos tempo.
Em “O Diabo Veste Prada”, nota-se que também há uma relação entre o tempo e a produtividade na execução das tarefas: as secretárias são impedidas de deixar o escritório, inclusive para ir ao banheiro, até que uma possa substituir a outra; exige-se dedicação total e tempo integral dos subordinados; a pausa para o almoço de Andy é apenas de quinze minutos – podendo ser cancelado à vontade da chefa (Miranda está sempre quinze minutos adiantada e quer que todos acompanhem seu ritmo).
Comentando acerca do almoço, o filme de Chaplin demonstra a concepção de que é necessário reduzir o tempo improdutivo que se perde com essas pausas. A técnica de revezamento tinha esse intuito: cada vez que um funcionário se ausentava outro tinha que substituí-lo.
A “auto-alimentadora Bellows” também representa essa idéia. Assim era o anúncio da máquina:
“Elimine a pausa do almoço e ultrapasse a concorrência. A auto-alimentadora Bellows elimina a pausa do almoço, aumenta a produção e reduz os custos gerais (...) para está a frente da concorrência a auto-alimentadora Bellows é imprescindível”.
Era o sonho de todo empresário da época: produzir mais por menos. Parece não haver preocupação alguma com a fadiga do funcionário (o mesmo pode ser dito sobre “O Diabo Veste Prada”). Huberman aponta duas razões para isso; uma de cunho tecnológico: “o proprietário inteligente sabia que arrancar tudo da máquina, o mais depressa possível era essencial porque, com as novas invenções, elas podiam tornar-se logo obsoletas”[2]; e outra relacionado ao investimento: “as máquinas representavam um investimento, e os homens não, preocupava-se mais com o bem-estar das primeiras”[3]. O incidente com a “auto-alimentadora” ilustra esse ponto: quando ela começou a dar defeito, preocupou-se antes com ela que com Carlitos.
Contudo, o psicólogo Pierre Weil referindo-se a relação existente entre tempo e produtividade escreveu que “certas experiências mostraram que diminuindo o número de horas de serviço se conseguiu aumentar o rendimento; a regra inversa também é verdadeira”, com isso, ele afirma que “é possível produzir mais trabalhando menos”[4], bem diferente da concepção proposta tanto em “Tempos Modernos” como em “O Diabo Veste Prada”. Interessante observar que Taylon já havia falado sobre isso naquele tempo.
HOMEM X MÁQUINAS
“Tempos Modernos”, diz um dos principais estudiosos da obra chapliniana, “deve antes ser considerado uma transposição desse conflito do homem com as coisas por ele criadas”[5]. De fato, a cena clássica em que Carlitos entra na máquina simboliza as idéias vigentes à moda de Taylon: “o homem como um apêndice da máquina”, “uma engrenagem dentro da engrenagem”. Também o episódio anterior em que ele come as porcas da auto-alimentadora pode significar o quanto o trabalhador era obrigado a assimilar o maquinário, tornar-se “um com ela”. E ainda temos o momento no qual o mecânico encontra-se preso às engrenagens: uma possível crítica ao fato de que, embora a tecnologia tenha aumentado a capacidade de produzir, o ser humano encontra-se aprisionado em suas potencialidades intelectivas, emocionais, criativas etc.
Não pensemos, contudo, que Charles Chaplin fosse totalmente contra à tecnologia e às máquinas, em uma entrevista datada de 1931, chegou a declarar: “o desemprego é a questão vital. O maquinismo deve ajudar o homem. Não deve provocar tragédias, nem suprir seus empregos”[6]. Hoje, na Era dos Computadores, Pierre Weil acrescenta: “quanto à informática, podemos observar a sua influência tanto positiva como negativa nas relações humanas, pois, se, de um lado, ela aumentou muito as relações entre os povos, através da formação de redes de intercomunicações – pode-se até namorar e casar via Internet – o uso individual de computadores tende a isolar as pessoas uma das outras, tanto no trabalho como na família”[7]. E ainda: “por muito tempo acreditou-se, no início do último século, que o maquinismo e a economia resolveriam o problema da produtividade. A experiência mostrou que isso não é verdade. A multiplicação dos acidentes de trabalho, o aparecimento de doenças profissionais [que já existia na época de Carlitos!], os fracassos de indivíduos inaptos, os problemas de relações humanas (atritos, rivalidades, ciúmes, incapacidade de dirigir) levaram empreendimentos promissores a fracassos totais. Além disso, por conseqüência da divisão do trabalho, o ser humano já não sente mais a mesma razão de trabalhar que antigamente [suponhamos que o autor se refira à época das manufaturas] era a satisfação de admirar obras criadas pelas próprias mãos. O estímulo de outrora não pode mais ser o estímulo de hoje em dia; diante da monotonia do trabalha sem objetivo aparente, o homem está se tornando cada vez mais peça de engrenagem, autômato, escravo”[8] (os comentários entre colchetes são nossos). Perceba o quanto Chaplin é visionário nesse sentido e o quanto as questões levantadas pelo cineasta são atuais.
A QUESTÃO DO SER HUMANO
Acerca da concepção de ser humano em “Tempos Modernos”, há muito que se comentar.
A segunda cena do filme, logo após o relógio, mostra-se um rebanho de ovelhas, sendo conduzidas ao abatedouro; em seguida, um grupo de pessoas indo ao trabalho nas fábricas.
Há muitas questões aqui.
A primeira delas é que a ovelha era o símbolo da Primeira Revolução Industrial ou Inglesa, centrada na indústria têxtil. No filme, essa imagem é sucedida pela dos operários indo à fábrica para iniciar a jornada de trabalho: isso pode representar as mudanças ocorridas entre a Primeira e a Segunda Revolução industrial. O professor de História Econômica da USP, Cyro de Barros, assim as enumera (os comentários entre colchetes são nossos): “dos produtos dominantes durante a Revolução Industrial Inglesa, apenas a estrada de ferro continuou recebendo um notável impulso, ampliando continuamente. O ferro deixou de ser um produto industrializado, para se transformar em matéria-prima para o aço [e justamente, no filme de Chaplin, trata-se de uma produtora de aço, a “Electro Steel Corp”]. O vapor de água foi substituído pela eletricidade e pelo petróleo, como fonte de energia. A indústria química permitiu a crescente independência industrial das matérias-primas naturais. A fábrica conheceu seu apogeu com a introdução da linha de produção [como Chaplin bem representa na esteira]. O capital concentrou-se em escala jamais imaginada. A ciência tornou-se matéria auxiliar da técnica [o maquinário, as câmaras filmadoras, a “auto-alimentadora Bellows” ilustram isso]. E a administração dos negócios adquiriu um caráter científico”[9][com Taylon e Fayol].
A analogia entre operários e ovelhas sugere a negação do estatuto de pessoa, “a sociedade trata o ser humano como animais”[10], ou seja, como irracionais que devem ser “adestrado”, “domesticado”, “treinado” para obter o máximo de eficiência no menor tempo possível. Isso implica na limitação do pensamento, das ações, da criatividade, da reflexão, da voz...
Exatamente criticando essa postura, Mathew Kelly escreveu: “toda empresa inventa um nome para os funcionários: associados, membros da tripulação, parceiros, parte do elenco. Aqui os chamamos de membros da equipe. Em outros lugares são chamados apenas de empregados. O principal é que já não nos lembramos de que, acima de tudo, eles são seres humanos”[11]. Mais do que um elemento do passado remoto, essa atitude ainda está presente em muito dos nossos relacionamentos, quer no ambiente de trabalho quer na vida pessoal: às vezes, esquece-se de que o outro é um outro “eu” e, simplesmente, instrumentaliza-se as relações.


[1] HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos S.A., 1986 (21ª Ed.) p. 163.
[2] Ibidem.
[3] Idem, p. 164.
[4] WEIL, Pierre & TOMPAKOW, Roland. Relações Humanas na Família e no Trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 2005 (53ª Ed.) p. 29.
[5] BAZIN, André. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1972 p.26.
[6] De acordo com o documentário, de Philippe Truffault, “Chaplin Today – Tempos Modernos” (Warner Bros, 2009).
[7] WEIL, Pierre & TOMPAKOW, Roland. Relações Humanas na Família e no Trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 2005 (53ª Ed.) p. 9 – prefácio à 53ª edição.
[8] Idem, p. 22.
[9] BARRO, Cyro de. São Paulo: Contexto, 2001 p. 145.
[10] Tempos Modernos – um tratado de Sociologia. Extraído do site: http://pt.shvoong.com/social-sciences/sociology/795932-tempos-modernos-um-tratado-sociologia/ (acesso dia 28/07/2009)
[11] KELLY, Mathew. O Administrador de Sonhos. Rio de Janeiro: Sextante, 2008 p. 36.

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