sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Analisando Diabo veste Prada e Tempos Modernos


O SER HUMANO DESPROVIDO DA VOZ

Observe que nenhum dos personagens fala no filme, senão através das máquinas: o inventor da auto-alimentadora, por meio do gramofone, o presidente da Electro Steel Corp., através dos alto-falantes, e locutor de rádio. Os diálogos entre personagens são “mudos” ou realizados através da técnica cinematográfica de “entre-títulos”.
Em 1936, já fazia dez anos da existência do cinema falado, entretanto, Chaplin optou por não usar esse recurso, talvez para ressaltar a privação dos sujeitos. Somente, Carlitos, em sua apresentação no Café, põe-se a cantar, em uma língua ininteligível, demonstrando, simbolicamente, a incompreensão que existe entre os desejos e direitos dos trabalhadores e os objetivos dos patrões (ou classe burguesa). A ausência de fala ou, melhor dizendo, a privação do direito de voz dos personagens representaria a resistência da burguesia em atender as reivindicações da classe operária. Privar o outro do direito da expressar-se é também uma forma de coisificar o ser humano. Diria um sociólogo: “o que torna o homem humano é básica e decididamente, a palavra, a linguagem”[1]. Um teólogo falaria, em sua linguagem mais poética que: “Com o seu respirar, o homem é ser vivo; com o seu caminhar, é ser móvel; com o seu bater, é ser forte. Apenas com sua palavra, sobretudo, aquela dirigida ao outro, o homem se torna ser pessoal, inteiramente homem”[2]. E o psicólogo Pierre Weil escreve que “a linguagem é o instrumento essencial das relações humanas”[3], ora, sem linguagem, é mais fácil instrumentalizar as relações.
Note que Miranda é uma chefa inflexível e autoritária que não respeita a opinião do outro. Observe também que as repressões às greves e manifestação populares, em “Tempos Modernos”, simboliza a idéia da massa impedida de reivindicar seus direitos, impedida de se expressar.

O SER HUMANO SEM NOME

Outro aspecto que retrata essa ideologia da coisificação do ser humano é o fato de que a maioria dos personagens não terem nome, inclusive o próprio Chaplin (sabemos que ele interpreta Carlitos porque este personagem já aparecera em outros filmes, mas em “Tempos Modernos” o narrador se refere a ele como “o nosso herói” e o xerife Couler o chama, simplesmente, de “número sete”) e a personagem de Paulette Goddard (denominada apenas de “a órfã” ou “a garota”). É como se tais personagens não tivessem identidade, não fossem ninguém, apenas mais um na multidão (como ovelhas entre o rebanho, para retomarmos a imagem inicial do filme). Somente um personagem do povo é denominado na trama: Big Bill – operário que trabalhava ao lado de Carlitos na fábrica. Mas, ele só recebe um nome quando num ato de rebeldia: ao tentar roubar a loja de departamentos, onde seu ex-companheiro trabalhava como vigia noturno. Entretanto, devemos observar que Big Bill só recebe um nome em relação a Carlitos (um de seus iguais, de sua classe operária, que se encontra na mesma situação), não em relação a seus superiores.
O mesmo desprezo com relação ao nome e/ou a identidade pessoal, observamos em “O Diabo Veste Prada”. Miranda, editora-chefe da conceituada revista de moda Runway, inicialmente, só chamava Andréia Sachs, sua segunda secretária, de “Emily” (no nome da primeira). Isso ilustra a indiferença que a chefa tem para com sua subalterna: não importa como ela se chame, o importante é que faça o que se pede! À medida que Andréia vai demonstrando sua competência na excussão das tarefas, Miranda passa a chamá-la de Andréia (nunca, porém, de Andy – mantendo assim a distância social entre ambas). A protagonista ficou tão maravilhada com o fato que exclamou: “ela me chamou de Andréia, não foi de Emily! Isso significa que fiz alguma coisa certa!” Em outras palavras, quer dizer que ela havia deixado de ser qualquer uma para se destacar em sua função.

A MULHER NO MERCADO DE TRABALHO

Ainda falando algo mais sobre a cena inicial das ovelhas em “Tempos Modernos”, parece legítimo compará-la com a cena inicial de “O Diabo Veste Prada”, na qual várias mulheres se arrumam para ir ao emprego. Se naquele são todos homens, trajando chapéus, ternos e gravatas praticamente iguais, neste, são todas mulheres, com estilos diferentes, roupas diferentes, pegando conduções diferentes para ir ao trabalho (uma vai de metrô, outra de táxi, outra ainda de carro próprio). Isso se dá porque os tempos são outros, enquanto na obra chapliniana que estamos analisando visava-se a padronização, no outro trailer é exatamente o oposto: prima-se pelo individualismo, o específico, o original (e a temática da moda significa exatamente isso: “o acessório é uma peça iconográfica, usada para expressar individualidade”, diz Doug, um dos amigos de Andréia). Há o contraste entre o modo comum de Andréia se vestir com o clamour e elegância das demais, há preocupação com o visual e a estética.
A cena inicial de “O Diabo Veste Prada” retrata a inserção da mulher no mercado de trabalho, temática que no filme de Chaplin trata um pouco também. Enquanto que neste “a entrada da mulher no mercado de trabalho é pela porta dos fundos, com um sub-emprego”[4], como dançarina em um Café, naquele vemos as mulheres em diversas profissões: Lili, amiga de Andréia, trabalha numa galeria de arte, a própria Andréia é jornalista de formação, mas trabalha como secretária, na Runway, onde trabalha há modelos e a editora-chefe da revista é uma mulher (o cargo de liderança exercido por mulheres era algo muito raro em 1936, mas, hoje cada vez mais normal). Se “O Diabo Veste Prada” não insiste na questão, dando outros exemplos, é porque é de conhecimento comum as conquistas das mulheres no mercado atual.
Contudo, devemos frisar que ainda a mulher, na maioria das vezes, ganha menos que o homem (mesmo desempenhando função semelhante) e trabalha mais (chamada “jornada dupla”).
Embora, a mulher encontre-se inserida há muito no mercado de trabalho, o preconceito ainda existe. Um diálogo entre Andréia e Christian Thompson referindo-se a sua chefa Miranda sugere isso: “ela é difícil, mas se ela fosse um homem, todos diriam que ela é ótima no que faz”.
Ao mesmo tempo, “O Diabo Veste Prada” mostra a inversão de papéis. As profissões tipicamente femininas vão ser ocupadas por homens: Nigel é desinger de moda da Runway, James Holt é estilista, Nate, namorado de Andy, é cozinheiro.

REBELDIA, SUBMISSÃO E CONTROLE

Resta-nos fazer uma última observação sobre a cena das ovelhas de “Tempos Modernos”: no meio do rebanho totalmente branco, existe apenas uma ovelha negra – é Carlitos ali representado. Em verdade, ele não se enquadra no perfil típico exigido pelo capitalismo: não é uma ovelha dócil, domesticável e nem produtiva, pois arranja confusão no ambiente de trabalho e também com o companheiro de cela da prisão, desrespeita as autoridades e as hierarquias – não possuía competência interpessoal. E, em um mundo cada vez mais marcado pelo controle, cada desvio deve ser devidamente punido: os colegas de trabalho perseguem Carlitos, a polícia e a instituição psiquiátrica funcionam com agentes reguladores – é preciso eliminar, excluir ou reajustar os elementos que se desviam do padrão, estes são tidos como loucos, agitadores, vagabundos. Mera injustiça social: nem Carlitos, nem “a garota” tiveram culpa pelos “crimes” dos quais foram acusados!
Acerca do controle acrescentemos mais algumas palavras. Em “Tempos Modernos”, o personagem de Chaplin era controlado pelo contra-mestre de produção na fábrica que, ao nosso ver, não tinha uma postura adequada para lidar com as pessoas. Temos o cartão de ponto para marcar e controlar cada saída do setor. A preocupação em acompanhar todo o desempenho do funcionário dentro da empresa se faz claríssimo com a idéia do sistema de filmagem da linha de produção dos corredores e até mesmo dos banheiros, tornando mais difícil a vida de quem queria matar o tempo, já que as imagens apareciam na sala do próprio chefe que imediatamente chamava a atenção do funcionário espertinho.
Há uma relação entre o controle rígido das fábricas e o sistema militar. Em “Tempos Modernos” isso fica claro pela analogia que se faz entre o apito da fábrica chamando os funcionários ao trabalho e o apito do policial na cadeia comandando os presos.
Em “O Diabo Veste Prada”, Miranda fazia questão de acompanhar os ensaios fotográficos de perto, ver os desenhos dos estilistas e suas roupas antes da publicação. E ainda contava com mais duas formas de controle da produção: o Livro (no qual toda noite fazia suas anotações para serem corrigidas no dia seguinte pelo seu pessoal) e o celular.
Mas, ao mesmo tempo, esse ato de “rebeldia” é aquilo que os torna humanos. O próprio Charles Chaplin chegou a comentar sobre os protagonistas de “Tempos Modernos”: “não são rebeldes ou vítimas, senão dois seres vivos num mundo de autômatos. Duas crianças sem sentido da responsabilidade, enquanto o resto das pessoas suporta o peso do dever. Somos moralmente livres”[5].
Também constitui ato de “rebeldia” ao processo de coisificação o amor e a solidariedade entre Carlitos e a Garota. Isso prova que eles não são “parte da engrenagem”, nem são “ovelhas”, mas são seres humanos, com necessidades reais, sonhos, medos, preocupações e também habilidades e talentos.
O Carlitos deslocado de determinado grupo social, não é muito diferente de Andréia Sachs. São pessoas que pertencem há um lugar social diferente dos quais são obrigados a estarem.
“A formação de um grupo para realizar trabalho coletivo obedece a leis psicossociais, que determinam regras a serem seguidas”[6], a desobediência a elas resulta nos mais variados tipos de sanções normalizadoras. Para citar exemplos em “O Diabo Veste Prada”: Andréia não foi bem aceita, inicialmente, pelas pessoas da Runway porque seu modo de se vestir não fazia parte dos padrões de beleza de seus futuros colegas de trabalho. Ao primeiro contato que Emily teve com Andréia, aquela exclamou: “O Departamento Pessoal não tem mesmo senso de humor!” – ironizando a forma como Andy se vestia. Na mesma seqüência, diz Emily a Andréia: “Para trabalhar aqui, você tem que gostar de moda”. Enumeremos também o estranhamento de Nigel ao vê-la, o olhar fulminantemente reprovador da editora-chefe, Miranda, sobre as roupas de sua segunda assistente e as caçoadas entre Serena e Emily sobre a saia da colega.
Nessas situações ou a pessoa evita qualquer contato com tal grupo (ou o grupo com a pessoa) ou aquele indivíduo adere às normas do grupo e, assim, vai sendo aos poucos acolhida. Foi isso que Andréia fez: mudou sua maneira de se vestir e passou a entender mais de moda – decisão diferente da que tomou o personagem chapliniano –embora, este tenha sido submetido como cobaia para o teste da máquina auto-alimentadora e passado por transtornos e humilhações perante os demais colegas de trabalho.
As pessoas correm o risco de perderem sua identidade, sua individualidade, mudando seus valores para adaptar-se ao meio, adquirindo outros valores. A mudança de comportamento de Andréia, causou certa rejeição por parte de seu grupo de amigos, a tal ponto de Lili dizer para ela: “essa Andréia eu não conheço!”
Uma grande diferença entre os dois filmes é que no primeiro, eram freqüentes as greves em busca de melhores condições de trabalho e de salários, enquanto no segundo filme, as pessoas ficavam submissas, sentindo-se impotentes, e acabam por abdicar da vida pessoal, da família, amigos, gostos e valores pessoais para se dedicarem ao trabalho, à espera de recompensa que nem sempre vê, mas que apesar disso, seguem com sorrisos falsos nos rostos e continuam a viver suas frustrações pessoais e acomodam-se com a situação.
Na maioria das vezes, Andréia apresentava um comportamento passivo: não conseguia manifestar o que pensava e acabava por aceitar a invasão pessoal e sua própria anulação para viver em função das ordens de Miranda. Ela atendia com muita presteza e agilidade tudo o que sua chefa exigia, inclusive as coisas mais absurdas que ultrapassavam suas atribuições dentro da empresa: comprar pranchas de surf, chinelos para as filhas de Miranda, buscar a seu cachorro de estimação no pet shop (detalhe: era um São Bernardo enorme!), conseguir o manuscrito original de um dos livros do Harry Porter, realizar o trabalho escolar das filhas da chefa.
Seu ato de “rebeldia” foi ter largado o emprego para não se tornar semelhante a sua chefa. Mas, fê-lo de forma pacífica, sem gerar conflitos. Já Carlitos...

SOLIDARIEDADE COMO FATOR HUMANIZANTE

Em meio a tantas situações desumanizantes que procuravam tratar o ser humano como coisa ou simples instrumento para realizar determinada função, os laços de solidariedade firmados entre os personagens de ambos os filmes demonstram que eles não são máquinas, mas pessoas.
Carlitos quis assumir o lugar da Garota no episódio do furto. Esta o retribui ajudando-lhe a fugir na sena subseqüente da viatura. O amor e o cuidado (quase paternal, assim poderíamos dizer) que um tem pelo outro trazem um pouco de docilidade à trama. A Órfã consegue-lhe emprego, por duas vezes: na primeira, sugere que ele procure a vaga disponível de guarda noturno na loja de departamentos (e o personagem de Chaplin lhe retribui, dando um lugar para dormir e comida na loja) e outra no Café como garçom e cantor. Chaplin o livra de ser presa por quatro vezes: no roubo do pão, na cena da viatura, na da loja de departamentos e no Café. Se a garota espera por ele sair da prisão em duas ocasiões (após o episódio da loja de departamentos e depois do incidente da greve). Carlitos é também aquele que a consola nos momentos de desânimo como, por exemplo, no final do filme.
Já em “O Diabo Veste Prada”, Andy se destaca por seu grande senso de solidariedade. Chegou mais cedo ao trabalho, quando sua colega estava gripada. Auxiliou Emily a lembrar os nomes dos convidados da festa, quando ela o havia esquecido. Foi visitá-la no hospital por ocasião do acidente. E, como forma de agrado, doou a sua colega todas as roupas que havia ganhado em Paris, pois Andréia sabia o quanto isso era importante para Emily.
Porém, Andréia também contou com a ajuda de Nigel que lhe ensinou a se vestir e a observar as coisas conforme a vontade de Miranda. Mais que simplesmente ensinar a se vestir, ele estava ensinando Andy a “vestir a camisa da empresa”, a filosofia de trabalho da Runway – o que era para ter sido feito logo no primeiro dia de trabalho! (nesse ponto, mais uma vez, Andréia e Carlitos se aproximam: que treinamento receberam para exercerem suas funções?).


[1] JÚNIOR, João Francisco Duarte. O que é a realidade. São Paulo: Brasiliense, 2002 (10ª ed.; 4ª reimpr.) p. 18.
[2] MANNUCCI, Valério. Bíblia: Palavra de Deus. São Paulo: Paulinas, 1985 (2ª ed.)p.13
[3] WEIL, Pierre & TOMPAKOW, Roland. Relações Humanas na Família e no Trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 2005 (53ª Ed.) p. 57.
[4] Tempos Modernos – um tratado de Sociologia. Extraído do site: http://pt.shvoong.com/social-sciences/sociology/795932-tempos-modernos-um-tratado-sociologia/ (acesso dia 28/07/2009).
[5] De acordo com o documentário, de Philippe Truffault, “Chaplin Today – Tempos Modernos” (Warner Bros, 2009).
[6] WEIL, Pierre & TOMPAKOW, Roland. Relações Humanas na Família e no Trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 2005 (53ª Ed.) pp. 16-17.

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