Este texto escrevia há quase um ano e meio. Permaneceu oculto até ontém. Fora proposto por nosso professor que falássemos acerca de nossos valores. Abri meu pequeno livro de memórias e li diante de todos essa declaração de amor fraternal.
Um menino loirinho, de olhos claros, beirando os quatro anos de idade, entra abruptamente no quarto dos pais. De repente, uma voz rouca o indaga: “você gostaria de ter um irmãozinho?”
Essa é uma de minhas lembranças mais antigas. À pergunta de meu pai devo ter respondido afirmativamente, pois não tardou para que minha irmã nascesse. Imagino que meus pais já tinham percebido a minha tendência à solidão e quiseram me presentear com uma companhia.
Desde criança, fui sempre muito imaginativo. Quando vi aquela bebezinha chegando à minha casa pensei que meus pais a tivessem comprado no supermercado ou em um shopping. Era só ir até lá e escolher uma criança como se faz com qualquer eletrodoméstico. Mas, não se aceitava devoluções! Eu não conseguia descobrir onde era a tomada ou onde ficavam as pilhas daquela menina que chorava o tempo todo! Só podia ser Duracell!
Minha irmãzinha precisava de um nome. Fui eu quem lha deu. Há uma historinha, contada todos os anos por minha mãe, na ocasião de seu aniversário, como se fosse um mantra ou algum tipo de ritual. Minha bisavó gostava muito de mim, quando íamos visitá-la, ela sempre me oferecia balas, chocolates, doces, biscoitos; por isso, eu a chamava de “Vovó Bombom”. Como forma de homenageá-la achei que seria bonito que minha irmã se chamasse Serdelina. Até hoje, a pobrezinha implica comigo por causa disso. Não consigo imaginar o sacrifício enorme que ela teve que fazer, no colégio, para aprender a escrever esse nome do leste-europeu. O mais cômico é que as pessoas se engancham ao pronunciá-lo, sai cada coisa: Sedelina (sem o “r”), Sardalina, Serdilina (com “i”)... Para facilitar, ela prefere ser chamada de Dely (não é Dêly ou Delí, é Dély – não sei de onde ela inventou o “y”).
O fato era que eu não entedia muito bem o que significava ter uma irmãzinha. Nem sempre fomos bons parceiros. Da infância, o que mais me recordo é de nossas brigas fraternais. E ela batia forte!
Antes de ela nascer, eu era o centro das atenções: o neto, homem, mais velho, o xodó de meus avós e tios, de ambos os lados da família. Aí chega aquela bebezinha, toda faceira, espertinha, dada com todo mundo, tomando meu lugar. Há uma fase em que a criança deixa de ser engraçadinha para os adultos e estes começam a exigir dela um comportamento de homenzinho, o qual nem sempre é fácil de aceitar.
Até pouco tempo, achava que isso era um comportamento exclusivamente meu, porém, segundo um psicanalista famoso na área de comportamento infantil, toda criança passa por esse drama, por vezes, imaginário: achar que está perdendo o amor dos pais e parentes devido a chegada do irmãozinho. Então, surge a fantasia de achar que se é adotado. Foi isso que aconteceu, por exemplo, na história da Cinderela: em seus relatos mais antigos, nada se fala de qualquer tipo de maus-tratos de seus irmãos (adotivos?), mas ela, na condição de filha mais velha, se sentia ameaçada por eles. A madrasta nada mais seria do que a própria mãe biológica da Cinderela fantasiada por sua mente infantil que vive o drama de não se achar parte dessa família. Que criança nunca passou por isso em sua vida?
Com o tempo, graças a Deus, fui aprendendo que não havia nada a temer. Pelo contrário, a sua companhia rendeu muitas e boas aventuras. Ser filho único é solitário, é ruim na hora de brincar. Fico a imaginar o quanto deve ter sido difícil para ela também.
Na maioria das vezes, brincávamos juntos, não importava se tínhamos de inverter os papéis: eu brincava de casinha, comidinha e boneca com ela e ela jogava bola, brincava de carrinho, de vídeo-game e outras coisas de menino comigo.
Está fresquinha na memória a lembrança de que também gostávamos de brincar de teatrinho. Improvisávamos umas peças e, não sei como, mostrávamos aquilo para nossos pais. Recordo-me de um personagem que criei: o Super Sérgio! Minha irmã tinha uma toalha infantil branca de capuzinho. Eu achava aquilo um espetáculo. Colocava na cabeça e fingia ser um super-herói. Que garoto de minha geração não sonhava o mesmo? Alguns queriam ser o Super-Homem ou o Batman... Eu era o Super Sérgio. Parecia um prenúncio daquilo que um dia eu me tornaria para minha irmã: uma espécie de protetor, guardião, sem capa, sem super-poderes, apenas munido de carinho.
Apesar das briguinhas infantis, a maior parte das vezes, fomos muito unidos: até os meus quatorze anos dormíamos juntos no mesmo quarto, brincávamos juntos, fazíamos natação juntos, estudávamos no mesmo colégio, fui seu par na formatura do ABC, o cavaleiro a dançar a primeira valsa dos quinze anos, seu padrinho de Crisma e, hoje, somos colegas de sala na faculdade.
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Eu e o meu irmão no meu aniversário de 24 anos. |
A maior de todas as lições que aprendi com minha irmã foi a humildade. Ser irmão é o maior de todos os treinos para se tornar humilde. Humildade é a condição de alguém que possui algum tipo de privilégio, mas que, no entanto, decidiu abrir mão dele para se fazer igual ao outro. Jesus é o exemplo máximo de humildade: mesmo sendo Deus, não se apegou a Sua condição divina, e se fez pobre com os pobres. Eu nunca deixarei de ser o primogênito, contudo, isso não é o mais importante, pois esta condição pode ser extremamente solitária. O essencial é ter quem amamos por perto, mesmo que isso signifique um “rebaixamento” de nosso status. A finalidade dessa descida ao lugar do outro nada mais é do que o desejo de elevá-lo aos mais altos patamares. Isso só fui capaz de compreender quando o amor de Cristo me encontrou.
Outra grande lição de fraternidade nos foi dada pelo tempo e do modo mais cruel para qualquer criança: a separação inesperada de nossos pais. Pelos idos de 1996, as brigas e discussões entre eles, outrora veladas, tornavam-se cada vez mais explícitas. Aquela nova realidade com a qual nos defrontamos, não condizia com a imagem de lar feliz que achávamos possuir. Meu pai se tornara dependente do álcool e minha mãe entrava, aos poucos, em uma crise depressiva profunda. O divórcio era inevitável. Há época minha irmã beirava os onze anos e eu quinze quando soubemos da decisão que mudaria para sempre nossa forma de ver o mundo.
Lembro como hoje: era um sábado, aprontávamo-nos para a aula de catecismo, iniciaram mais uma discussão, chamaram-nos ao quarto e anunciaram, entre lágrimas, a separação. Motivo: havia outra na vida de meu pai. Minha irmã e eu chorávamos, pois sabíamos o que isso poderia significar: um vazio enorme. Verdade que nosso pai não era muito presente em nossas vidas, pois trabalhava muito, contudo era melhor ter um pai pouco presente do que um pai completamente ausente. Lição que logo aprenderíamos. Depois da triste cena, ainda chorávamos muito, quando nosso pai nos deixou na catequese – mal sabia ele que, naquele instante, estava nos colocando aos cuidados de um Outro Pai.
Essa separação, que nos próximos messes se revelaria cada vez mais traumática, principalmente para minha irmã, deu a mim o maior de todos os tesouros: uma família. Minha mãe, minha irmã e eu éramos inexperientes nas coisas do mundo, pois nosso pai sempre nos havia dado tudo de que necessitávamos, entretanto, esqueceu-se de nos ensinar como era a vida lá fora, além dos muros de nossa casa e distante de suas asas. Embora eu contasse com quinze anos, não sabia sequer andar no centro sozinho, pegar um ônibus, pagar uma simples conta ou realizar uma operação bancária. Quando penso nisso, vejo o quanto amadureci. Daquele dia em diante recebi minha família como presente, estávamos mais unidos como jamais fôramos. Eu não era casado, mas já tinha uma casa para tomar de conta e uma “filha” para cuidar, minha querida irmã. A partir daí eu seria o único referencial masculino que ela teria: seja para conversar, desabafar, aconselhar ou mesmo como responsável por cuidar, proteger e ensinar sobre as dificuldades da vida e malícias do mundo. Mas, qual referência de pai ou mesmo de homem eu tive? Muita coisa foi necessário aprender errando, porém, o meu maior referencial veio do Pai que eu conheci na mesma época: o Deus que me amou até o fim, o Homem Jesus de quem aprendi ser justo, honesto, verdadeiro, um homem diferente dos outros rapazes de minha idade, um verdadeiro homem.
Minha irmã e eu passamos por muitas dificuldades. Tivemos que amadurecer de pressa. Parte da adolescência fora roubada, atropelada. Contudo, isso nos serviu para estreitar nossos laços, inclusive quando tudo parecia conspirar contra nós e somente tínhamos um ao outro, mesmo diante do risco de morte... Fizemos uma promessa: nunca nos separaríamos.
Era noite. Havia passado por uma das maiores humilhações de minha vida, injustiçado por minha própria mãe, estava decidido abandonar a casa na qual me criei. Não queria mais sofrer pela falta de reconhecimento. Ninguém nunca pôde imaginar os sacrifícios que tive que fazer – mas um dia, naquele dia sem fim, chamado eternidade, todos saberão do segredo... eu me senti tão ferido em minha dignidade! Fugi de casa apenas com a roupa do corpo, a pé. Tinha dinheiro suficiente para me manter por algum tempo. Fui até a Igreja desabafar com meu Pai, derramar meu coração em lágrimas. Chorei como criança desamparada. Ao recobrar as forças, rumei para a rodoviária. Pensava em pegar um ônibus para a casa de meu avô materno e depois de algum tempo, sumiria para sempre... Foi quando me lembrei daquela promessa: não poderia abandonar minha irmã, quem iria defendê-la? O amor me fez voltar, fez com que eu ignorasse as humilhações e retornasse para cuidar dela.
***
Por que escrevo tudo isso? Aconteceu algo esses dias que me deixou preocupado. Era uma ensolarada tarde de quinta-feira. Íamos nos matricular na faculdade. Fomos de carro. Pouco tempo depois de sair de casa, um senhor invade a preferencial e atinge o lado do passageiro, onde se encontrava minha irmã. Minha primeira reação foi saber como ela estava. Graças a Deus, nada de grave ocorrera, bastaria um pouco mais de velocidade para tudo ter sido diferente!
O assombro daquele momento me colocou diante de uma possibilidade com a qual nunca teria contado: eu poderia perder minha irmã para sempre. Só de pensar nisso sinto um medo profundo. Não quero jamais chorar sua ausência definitiva. Isso não é natural. Natural é que os mais velhos se despeçam da vida por primeiro e os jovens trilhem seguros seus caminhos. Mas a vida é feita de surpresas. Nunca sabemos quando será o derradeiro encontro. Cada momento nos remete ao último instante. Ah, se compreendêssemos isso! A vida seria diferente...
Às vezes, sou muito reservado em meus sentimentos. Nunca disse tais coisas a minha irmã. Nunca disse o quanto a admiro e o quanto vejo nela alguém melhor do que eu. Alguém que me inspira. Uma razão para permanecer... sempre que não consigo falar, ponho-me a escrever: assim a fugacidade das palavras faladas se eternificam no papel. Sempre me pergunto: que seria de mim sem minha irmã? A única resposta que consigo encontrar é que seria apenas aquele garotinho loirinho que entrou no quarto dos pais... seria mais solidão.
Texto que meu irmão Sergio Gleiston escreveu pra mim e que foi revelado ontem na aula sobre os nossos valores...
disponivel no blog dele:
http://sergiogleiston.blogspot.com/
Obrigada meu irmão por tudo o que vc representa pra mim...
Com carinho,
Dely Nicolete